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6 de julho de 2012

Bandeiras antigas


Não bastassem os que discutem se o cristianismo é a verdade, há também os que questionam sua possibilidade. Perguntam não apenas a respeito da relevância, mas querem saber principalmente até que ponto o estilo de vida proposto por Jesus pode ser encarnado na sociedade contemporânea. Como virar a outra face sem ser massacrado pela violenta competitividade? Como perdoar setenta vezes sete sem perder a dignidade nas mãos dos cínicos? Ou como deixar de odiar aquele que estuprou a filha ou sequestrou o pai? São inquietações daqueles honestos que sabem que o caminho da espiritualidade não é conceitual, mas vivencial, na dinâmica que vai além do crer e se concretiza na experiência: o discipulado implica não somente crer como verdade o que Jesus ensinou, mas fundamentalmente andar como ele andou.

A ética do sermão do Monte é possível no mundo contemporâneo? As proposições do apóstolo Paulo não estariam condicionadas ao seu tempo e a seus contextos cultural e social? Os mandamentos morais da Bíblia Sagrada ainda são caminhos de vida, mesmo nesta sociedade pós-moderna? A sociedade pragmática confronta o cristianismo não mais no debate a respeito da verdade, mas da funcionalidade. O que a turma quer mesmo saber não é se o Evangelho é a revelação divina, mas se esta revelação aponta na direção da felicidade imediata e da solução dos problemas cotidianos, em que solução e felicidade estão de mãos dadas com conforto, pouco ou nenhum sacrifício, resultados emocionais satisfatórios e bem-estar pessoal.

Esta abordagem a respeito da atualidade e da exequibilidade do cristianismo não está presente apenas nos ambientes de oposição à fé evangélica, mas já encontra seus articulados debatedores dentro mesmo dos nossos arraiais. Essas perguntas me são feitas sistematicamente pelas pessoas que se consideram cristãs, de confissão evangélica, muitas delas no meio de um conflito que as levou ao gabinete pastoral, ou despretensiosamente em conversas informais, nas quais pretendem esconder a angústia pessoal num debate displicente, como se falassem a respeito de terceiros. Por exemplo, tenho sido chamado a responder se as antigas afirmações dos crentes ainda estão valendo: sexo antes do casamento ainda é pecado? Divórcio é pecado? Divorciado pode casar de novo? A gente tem mesmo de pagar tudo quanto é imposto?

Não estão de todo errados aqueles que assim questionam. De fato, uma coisa é defender o sexo no contexto do casamento quando o ato conjugal era prática imediata à puberdade, fruto de acordos familiares; outra coisa é falar de sexo no casamento quando os nubentes não estão mais com 14 ou 15 anos, mas já com 28, ativos no mercado de trabalho e, obedientes aos pais, marcam a data do casamento para “depois da formatura na faculdade”.

Não resta dúvida de que a lei do divórcio foi promulgada muito mais em defesa da mulher que, abandonada pelo marido, estaria exposta à infâmia, à rejeição social e ao desprezo da família de origem; outra coisa é falar de divórcio numa sociedade desenvolvida na defesa dos direitos individuais. Uma coisa é falar de integridade fiscal para um grupo de pessoas identificado como minoria, lutando para firmar seus alicerces e preservar sua continuidade histórica sob perseguição do império; outra é falar para um povo cuja fé está consolidada, detém nas mãos as ferramentas que possibilitam sua defesa diante de um Estado corrompido e opressor, numa situação em que se defende até mesmo o terrorismo contra toda e qualquer expressão de imperialismo.

Nossa bandeira é a cruz

Alguém poderia argumentar, então, que as bandeiras cristãs da virgindade, da indissolubilidade do casamento e da sujeição às autoridades estão ultrapassadas. Confesso que, de vez em quando, engrosso a fileira dos que fazem perguntas. Mas tenho como certo que a discussão a respeito da ética cristã não coloca em xeque a ética cristã em si, mas a sociedade que a questiona. O que deveria ser discutido: a virgindade ou a erotização infantil? A indissolubilidade do casamento ou a banalização da família? A sujeição às autoridades ou a ausência de integridade daqueles que deveriam ser modelos do viver?

Não tenho dúvidas a respeito do valor e da propriedade do sexo restrito à relação conjugal. Os danos da promiscuidade são incomparáveis. Vivemos numa sociedade bestializada, onde as pessoas foram reduzidas à utilidade do corpo para o fetiche de terceiros. A grande fome do nosso mundo não é de sexo, é de romance. Os meninos já não querem mais uma gatinha para levar para a cama – querem uma mulher com quem repartir o futuro. A grande reclamação das meninas é a falta de “caras decentes”. Jamais imaginei debater com jovens no ocaso da puberdade e já enfastiados de sexo. Todo esse frisson erótico é virtual. Na intimidade dos casais, a discussão é a perda do apetite sexual, a impotência, e as mulheres já não reclamam da falta de um pênis, e sim da falta de um homem.

Também não tenho dúvidas a respeito do valor e da propriedade do casamento “até que a morte vos separe”. Aprendi que a gente não casa para ver se vai dar certo, mas fazer dar certo. O compromisso conjugal não é um atalho para o prazer indolor, mas um passo na direção da coragem para o autoconhecimento, da transformação e do crescimento pessoal, no intercâmbio de forças e fraquezas, em que um faz o outro melhor, muitas vezes às custas de atrito e faísca, pois somente assim o ferro com o ferro se afia. Costumo dizer que durante a vida de solteiro nos estragamos, e o casamento é a principal proposta terapêutica de Deus. Quem não quer crescer, vencer limites emocionais, reescrever sua história, exorcizar seus demônios, fica solteiro ou pula de paixão em paixão, em relações que são eternas enquanto duram. Isso sem falar na saúde das futuras gerações e no equilíbrio sistêmico possível apenas a uma sociedade que saiba valorizar a família.

Finalmente, continuo crendo no valor e na propriedade da sujeição às autoridades. Ou você prefere o atual faroeste urbano e o caos que resulta do famoso “cada cabeça uma sentença”, em que o fraco é oprimido pelo forte sem que ninguém se levante em sua defesa, o rico espolia o pobre, o mal subverte o direito do justo? A completa degeneração do sentido de autoridade, tanto de quem a exerce quanto de quem a ela deveria se submeter, é uma peça necessária para qualquer debate que se proponha a montar o quebra-cabeça da barbárie social em que vivemos. A degeneração das relações entre pais e filhos, professores e alunos, idosos e jovens acaba jogando no ralo a equidade das relações sociais. A integridade fiscal entra nesse pacote. Ainda creio na taxação tributária como caminho para a distribuição de renda, e que a corrupção generalizada não deve nos levar a questionar a validade do tributo, mas a desenvolver mecanismos fiscais e judiciais capazes de colocar esta laia na cadeia.

A esta altura do campeonato, você deve se perguntar se meu próximo assunto não será em defesa da tríade “tradição, família e propriedade”. Ainda não. Aproveito este espaço apenas para expressar meu cansaço diante da hipocrisia e da superficialidade do debate em torno da ética. Não consigo mais discutir virgindade com consumidores de pornografia que se entregam sem restrições aos instintos. Não consigo mais discutir indissolubilidade do casamento com jovens cheios de arrogância que acreditam mais em Sartre do que em Jesus e andam propagando que “o inferno são os outros”. Não consigo mais discutir sujeição às autoridades com gente irresponsável, incapaz de um mínimo gesto de solidariedade, e que não tem olhos para a pobreza, pois está ocupada em fazer as malas para “descansar um pouquinho neste feriado prolongado”.


Ed René Kivitz [extraído de Outra Espiritualidade]

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